sábado, 11 de agosto de 2012

Palavra

"A palavra foi feita para isso: para ser desfeita, esvaziada. A palavra é um furo que a cada olho transborda".

Essa frase, do ótimo professor Evandro Pisa, em carta aberta à Manoel de Barros atingiu-me essa noite e me colocou para pensar. Ao invés de pensar alto, pensarei cá baixo, escrevendo.

E se me colocou para pensar foi graças à uma tarde um pouco mais preguiçosa lá no Palácio das Janelas Verdes, onde pude ler algumas colunas do Lênio Streck lá no Conjur. Uma dessas colunas, "O perigo do neopentecostalismo jurídico", além de fazer uma breve análise da "profundidade" dos argumentos trazidos em algumas das sustentações orais da Ação Penal 470, vulgo mensalão, traz uma interessante comparação entre o ludopédio, o neopentecostalismo e o direito.

E o que uma coisa tem a ver com a outra? O papel da palavra. Enquanto um brada que "a palavra foi feita para isso: para ser desfeita, esvaziada", outro sustenta o oposto, lamentando que palavra e coisa não mais andam junto uma da outra.

Assim, o direito ficaria entre o comentarismo do esporte bretão conjugado com uma performance neopentecostalista, repetindo sempre as mesmas frases e expressões, bordões poucos refletidos, sentenças para concursos, e a tendência a violar uma palavra, retirando-lhe o sentido original e penetrando-lhe outro indesejado.

E o "mundo do direito" (que é o mesmo mundo em que vivemos minha gente!) vê esse fenômeno por duas formas diametralmente distintas.

A primeira, a que Streck critica, é uma mania tanto de advogados quanto de magistrados de, a fim de sustentar o insustentável teorica e tecnicamente, simplesmente assumem que uma palavra significa coisa outra. É o alegar a razoabilidade e a ponderação para tomar decisões políticas ou desconsiderar leis para algum caso concreto. É extrapolar qualquer possibilidade de interpretação legal da lei para interpretá-la como melhor convier.

A segunda, é a que vemos no cotidiano de alguns colegas e professores. É "louvar" palavras "oprimidas", dando-lhes atenção e buscando ressignificação. É o ver o "direito" em todos os lugares, um verdadeiro deus ex machina a transformar e revolucionar a sociedade em direção à ditadura do mundo ideal. É se achar inclusivo por "encher a boca de merda". Tudo é justificado por igualdade e liberdade, mesmo não sendo possível explicação "racional".

Enquanto um esvazia o direito por enxergá-lo apenas como forma (é só mudar o conteúdo que dá pra se fazer o que se quer), outro esvazia-o por enxergá-lo apenas como substância (não importa de que forma, o direito é isso). Mas direito sem conteúdo é autoritarismo. Mas direito sem forma não é outra coisa que uma projeção de ideal de mundo.

Que palavra e coisa sigam juntas. Ou que pelo menos uma não perca a outra de vista...

domingo, 20 de maio de 2012

Por que alguém processaria a Suíça por violação aos Direitos Humanos?

Deparei-me com essa pergunta ao buscar por assuntos que viessem a ser interessantes para comitês jurídicos, ou melhor cortes ou tribunais, a serem simulados em um Modelo das Nações Unidas. A pesquisa por esses assuntos foi simples. Como era algo que deveria ser ligado a uma temática de dignidade da pessoa humana (ó metaprincípio que resolve tudo e não diz nada!), busquei guarida nas cortes regionais de Direitos Humanos.

Na Corte Interamericana de Direitos Humanos não encontrei nada que fugisse das nossas correntes atrocidades. Tortura, violência contra a mulher, violência contra o imigrante, nada que fugisse ao usual. A diversão começou quando busquei pelos casos que estão sendo apreciados pela Corte Europeia.

Por óbvio, também estavam presentes algumas daquelas atrocidades. Violações em diretos dos migrantes no Azerbaijão (é Europa também, né?), contra o direito ao devido processo legal e ao direito dos detentos na Rússia (onde mais?) etc. Mas o que me chamou a atenção foi que havia dois casos abertos contra a Suíça.

Daí vem a pergunta, quem é que processaria a Suíça por violação aos Direitos Humanos? Um dos casos apresentava documentação majoritariamente em francês, então nem me dei ao trabalho de me dar ao trabalho de tentar entender. Mas o que estava em inglês...

É uma reclamação de violação à liberdade de expressão. Uma "associação" viu-se proibida de divulgar posts com alguns de seus princípios por atentar contra a moralidade. Até que causa um certo espanto isso acontecer na Suíça, embora o país seja dividido em "Cantões", seja o (se)bastião da neutralidade e, por que não?, ainda levemente conservador.

Poder-se-ia pensar, nessa época em liberação de quase tudo, que seria mais uma dessas organizações pró-direitos de LGBTTT, pró-aborto, pró-(insira sua minoria). Mas não. Perseguição a essa gente não acontece na Suíça. Se é pra Suíça cassar o direito de livre expressão de alguém, tem de ser alguém especial.



E é. A associação reclamante é a Mouvement Raëlien Suisse. Mas quem é a dita cuja? Ah, claro, é uma associação de cidadãos que se preparam para contato com alienígenas, pregam a "geniocracia" (forma de governo que privilegia os... gênios?), é crítica à democracia, favorável à clonagem humana e à eugenia e vê crianças como "objetos sexuais primários" (seja lá o que isso signifique, não creio que esteja ok).


Ao perder em todas instâncias na Suíça, processa esta junto à Corte Europeia. Por enquanto, está perdendo, mas vai a julgamento junto à Grand Chamber, provavelmente ainda este ano.


E aí, será que tem chance de que seja reconhecida a violação ao seu direito de livre expressão?


Ps: Aliás, o símbolo da associação é, incrivelmente, uma suástica dentro da estrela de Davi.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Preciso de férias

Sabe o que me deixa inquieto? É ver que continuarão com o mesmo discurso, mas continuarão sua vida sem que ele interfira em nada. Serão políticos, servidores públicos e, pasme!, até mesmo advogados. Os mais engajados serão professores de sua fé.

Usarão a dogmática como poucos. Quem sabe até mesmo alguns sejam doutrinadores! Eles sabem que são das melhores cabeças pensantes. Desprezam a Universidade e o curso de Direito que temos hoje, mas serão dos operadores (sim, operadores) mais brilhantes.

Pregam respeito, igualdade e solidariedade (e há espaço para outra fé?). Advogam um fluxo comunicativo perfeito. Defendem até mesmo a... Revolução(?). Não enxergam (ou será que são cientes de sua hipocrisia?) que passam uma vida inteira apenas no discurso, um discurso que comove e envolve, mas, que por si só, não age.

Os ídolos envergonha-se-iam. Mas sempre encontrarão espaço na Universidade que tanto criticam, uma Universidade estéril, hermética e auto-reflexiva, ausente da realidade.

Apesar de tudo, são das pessoas mais fascinantes que se encontra na vida. É por elas que nos apaixonamos, que nos ligamos por laços de amizade. São eles os admirados. É deles a vida que todos acompanham. São das melhores cabeças. E isso sempre deixa a dúvida de se alcançaram ou não o impossível do discurso.


Preciso de férias pois preciso de um descanso deles. Preciso me alimentar do cotidiano sem pretensões. De uma bateria de kart. De piadas sujas sem medo da patrulha. De planejamentos estratégicos pessoais a longo prazo. De pessoas que não esperam de mim a Revolução, mas apenas um bom abraço e uma caminhada pela praia. De começar mais uma (algumas) faceta(s) do cubo que me mostro.

Preciso de tempo para descobrir o que quero. "Acho que não sei quem sou/Só sei do que não gosto". O que quero não está na Universidade, isso já é sabido. Meu receio é de que não esteja em lugar algum.

domingo, 13 de novembro de 2011

11/11/11 – A Histeria da Periodização


Esta sexta-feira que se passou foi o “marcante” dia onze, do mês onze, do ano dois mil e onze (apelidado por alguns como Romario’s Day, em homenagem ao baixinho artilheiro do futebol). Trata-se de uma curiosa coincidência. O ponto desse texto é marcar que, além de curiosa, é uma coincidência inevitável. A partir do momento em que o homem começou a contar o tempo de forma cíclica, momentos como este, no qual os “dígitos marcadores” coincidissem, aconteceriam de qualquer forma.


O que se observa em um dia como este, entretanto, é uma pequena histeria generalizada. Não faltam matérias na televisão, principalmente no jornal local ou no “das donas de casa”, geralmente com escassez de material a ser explorado, sobre o quão “diferente” é o dia. Não são raros os depoimentos de sensitivos, numerólogos, astrólogos e outros com ligação com o divino ou com o sobrenatural afirmar o quão especial será o dia. Até uma ligação com o onze de setembro, dia que por si só já nos implica uma periodização, foi levantada, a fim de mostrar-nos que o onze é um dia em que as coisas “acontecem”.

Porém, esta data é diferente do já falado onze de setembro (que de tão fresco na memória dispensa o ano), do quatorze de julho de mil setecentos e oitenta e nove, do vinte e nove de maio de mil quatrocentos e cinqüenta e três, do quatro de setembro (data especialmente marcante para este autor) de quatrocentos e setenta e seis e tantas outras datas que a História, ou melhor, o Historiador, escolheu ressaltar. O dia onze do onze do onze é uma data marcada apenas pela curiosidade numérica, não por um evento político-histórico.

 Ou melhor, a insignificância do onze do onze do onze reside no fato de ele ter ocorrido na sexta apenas por causa de uma outra periodização, aquela que estabeleceu qual seria o dia primeiro do mês primeiro do ano primeiro. Esta sim, uma periodização política por natureza, que indica quem é o dono do tempo.

A divisão de eras entre antes e depois de algo é um ato político que apenas quem detém poder sobre os homens e seus ciclos pode estabelecer. A tentativa revolucionária francesa mostra que não é um atos simples. Talvez nem mesmo volte a ocorrer. Apenas uma ideologia globalmente dominante poderá, novamente, resetar nosso calendário.

Assim, outras datas engraçadinhas ocorrerão simplesmente pelo tempo ser contado de forma cíclica e por se ter estabelecido um marco inicial. São insignificantes pois este marco inicial poderia ser qualquer outro que não o atual. Ou seja, foi um “acidente” que sexta tenha sido o dia dos onzes. Poderia ter sido qualquer outro dia. Ser o dia setecentos e trinta e quatro mil trezentos e cinqüenta e seis depois do início de uma contagem não faz um dia especial (descontando-se anos bissextos, alterações de calendários no meio do caminho entre outros).

Apesar de ser uma gostosa brincadeira, não podemos deixar que o calendário nos governe. Seu caráter cíclico é importante para que possamos cadenciar nossa existência, mas apenas isso. Não nos deslumbremos com os números da folhinha. Esses dias não significam nada para a História, não nos faz lembrar nada. Atenhamos aos números que nos dizem algo, seja politicamente, como o sete de setembro, seja pessoalmente, como um aniversário, para que nos aprofundemos em uma reflexão sobre tal fato.

Que o caráter cíclico do tempo nos auxilie a refletir sobre Homem e o Tempo, e não a nos fazer crer que os onze fará do dia algo especial.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Meu coração é affectio tenendi


Meu coração é res derelictae, coisa sem dono. Coisa móvel, acessório do meu eu, não se trata de pertença. Apesar de às vezes duvidar, é infungível, afinal, não hei de aceitar coração outro ao final de um empréstimo. Que o comodatário o trate bem; não há perdas e danos que compensem o prejuízo causado.

É indivisível, embora sua composse seja possível. É situação instável, entretanto. Não queira viver com um coração com múltiplos posseiros. Esbulhos e turbações serão inevitáveis e, em matéria de bem-querer, não há ação possessória ou petitória que resolva a situação. Não é consumível, embora produza frutos (naturais ou civis? Reais ou fictos? Dúvida terrível!) que são de livre uso pelo dono, em qualquer horário e lugar.

Benfeitorias foram feitas, embora nenhuma fosse realmente necessária. Enquanto res nullius estivera bem, sem as benfeitorias úteis, e, principalmente, as voluptuárias, que acompanham um amor. O problema de tais benfeitorias é que não podem ser levantadas sem prejuízo da coisa principal. Não tive escolha. Arquei com a perda, já que o valor de tais benfeitorias em muito superavam o valor de superfície (ou pelo menos foi isso que me fizeram acreditar...).

Quem o tiver por bom e caro, por favor, não queria recompensa, não se trata de descoberta, mas sim de ocupação. Atente bem, é forma originária de aquisição, não há de se preocupar com antigos possuidores. Não há necessidade de tradição ou registro. Basta a affectio tenendi. Basta ter afeto suficiente para querer o ter.

Meu coração é res derelictae, coisa à espera de dono.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Hey my droogies!


Acaba de me ocorrer uma idéia. Importante identificar a “genealogia” desta idéia, antes mesmo de apresentá-la. Ela é filha da apresentação, por parte do PET-Dir, do filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, e sua posterior discussão com os alunos presentes e com o professor convidado Evandro Piza. Também tem como progenitora leituras referentes ao textualismo e ao giro lingüístico aplicados na história, como parte de disciplina ofertada pelo prof. George Galindo (Perspectivas Interdisciplinares entre Direito e História).

Embora a discussão dominante foi sobre a função da pena e da prisão para o sistema penal e para a sociedade, deslocando-se, posteriormente, para o sempre presente problema da segurança no campus, uma questão, tratada apenas tangencialmente, volta-me agora à cabeça.

É o uso, por parte do protagonista (A-lex), de palavras “emprestadas” de outro idioma. Nosso debatedor, professor Evandro, assumiu que tal característica teria como fim “infantilizar” o protagonista, a fim de dar “ares de inocência” a suas ações. Assim, por ser infantilizado, A-lex não teria a exata noção de suas ações, ou, por outro lado, apenas não se “importaria” com as conseqüências de seus atos. Uma “infantilização” do agressor nos traria para mais perto delo, nos pediria simpatia.

O que tento colocar aqui é bastante diferente. O uso de droog, gulliver, malchick, prestoopnik dentro do filme pode ter um significado diverso do de simplesmente infantilizar o fora da lei, ou de prestar “propaganda subliminar eslava”. O uso de termos alienígenas, ou mesmo inexistentes, pode expor a tentativa de se fugir das estruturas lingüísticas presentes em uma sociedade. É a sustentação de que nenhuma tradução é perfeita. E, por isso mesmo, os droogs podem não ser simplesmente “amigos” ou “comparsas” para A-lex. Uma significação que iria além do que já se tem é uma perspectiva.

A-lex poderia, da mesma forma que fez com as regras sociais e criminais, estar jogando fora das regras. Criando novas regras para interação. Talvez a “cura” de A-lex pode ter cortado pela raiz a ascensão de uma nova forma de relações interpessoais, de uma nova forma de se estruturar o pensamento e até mesmo de uma nova forma de se conectar com a realidade.

Daí que nos perguntamos: a quase infinitude de institutos jurídicos conseguem expor de forma satisfatória a realidade que nos cerca? Se sim, é essa a realidade que nós queremos? Pode o Direito, com uma mudança radical em seu interior, acarretar mudanças não menos radicais na Sociedade? Estrutura estruturada ou estruturante, a visão, e mesmo a prática, de um direito “alternativo” pode ser interessante exercício para aferirmos a elasticidade das bordas de nossa sociedade.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O Pianista, do herói judeu Wladislaw Szpilman

Como começar a escrever um post sobre um livro que, apesar de bastante curto, é intenso, do início ao fim, em emoções? Como escrever sobre uma história tão cruel e tão distante do cotidiano que enfrentamos?

Começo com uma dúvida. É possível imaginar o sofrimento passado pelo povo judeu na segunda guerra mundial? É possível tentar recriar a desgraça pela qual passou a Polônia naquela época (desgraça essa que é um dos panos de fundo de A Vitória de Churchil)?

Começo com uma tese.As atrocidades passadas por esses povos é tão absurda que escapa à compreensão geral. O homem médio, o homem ordinário não é, e muito provavelmente não fora àquela época, capaz de assimilar as corrupções claras aos Direitos Humanos, principalmente naquela estranha Alemanha. Diante do absurdo - o qual nunca esperamos nos defrontar - muitas vezes preferemos nos omitir, desejar que nada está acontecendo.

A falta de empatia, a falta de reconhecimento na desgraça, faz com que, apesar de repetirmos com vigor todo o absurdo passado àquela época, não tentamos perceber na pele o sofrimento alheio.

E creio que, pela narrativa de Szpilman, em forma de um diário - mesmo que não haja aquela característica divisão dos acontecimentos por dia - me leva a crer que os próprios oprimidos não queiram enchergar a opressão. Diante do absurdo, preferem fechar os olhos, pensar que dias melhores virão. Notícias ruins, e a própria realidade, são absorvidas como mera situação passageira, como um limbo necessário para que possam ascender ao paraíso.

Mas o limbo descrito no início da história, com a formação do gueto em Varsóvia e o aperto da opressão alemã, passa a virar inferno. Inferno para os mais de 500 mil judeus de Varsóvia. Uma trajetória que deságua no Umschlagplatz, o "centro de distribuição" dos últimos restantes de Varsóvia, a cidade que morre, em alusão ao título original do livro, nada mais que uma praça de despacho de seres humanos para o abate. É uma clara face da banalização do mal.

Incrível também é notar a serenidade de Szpilman em retratar os seus 3 anos de esconderijo, nos quais em grande parte deles passou em um banheiro. Isso mesmo, passar mais de 18 horas por dia dentro de um banheiro. Isso quando não em trabalhos forçados ou por baixo do forro de telhados de prédios já destruídos pela guerra.

Duro perceber a morte sempre por perto. Perto o suficiente para que ela própria seja uma alternativa para a tortura e sofrimento. Viver com venenos para que a morte indigna e dolorosa não venha.

O pianista é uma história de, desculpem o chavão, superação. Uma história de luta pela rotina! Szpilman, mesmo na fase de trabalhos forçados, se esforçava para poupar as mãos. Afinal de contas, era um pianista, e elas são seu instrumento de trabalho! Lindo observar o carinho que tem por suas composições, que o acompanha por todos os esconderijos. Também digno notar que foi o dom da música que o salva da música, quando encontra um oficial alemão que, ao ouvi-lo tocar, decide ajudá-lo a passar pelos últimos meses da ocupação alemã.

Leitura mais que recomendada. Nota 10 para a narrativa